Era para ser um sonho, mas já está mais com cara de pesadelo, que já dura 15 anos no total. Depois de ficar na fila para conseguir o seu imóvel por dez anos, a auxiliar de biblioteca Rosimeire Rodrigues de Ataíde, de 49 anos, recebeu, em 2018, as chaves de seu apartamento de dois quartos, construído no Parque dos Pireneus, em Anápolis (GO), com financiamento da Caixa Econômica Federal, por meio do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Porém, desde que entrou para o apartamento, há cinco anos, ela sofre com defeitos ou vícios construtivos detectados nos imóveis que receberam, mas que nunca foram solucionados. Rosimeire figura entre os milhares de beneficiários do PMCMV, espalhados pelo país, que passam pelo mesmo problema.
Para se ter ideia de quanta gente é atingida por esse tipo de situação, o problema foi tema de um debate promovido em junho de 2021, durante o seminário “VI Seminário Conjur/CBIC – Construindo o Direito”, organizado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). Na ocasião, a discussão reuniu representantes da Caixa Econômica Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que informou, à época, o ajuizamento de mais de 80 mil ações no Poder Judiciário sobre vícios de construção, só na faixa I do PMCMV.
Moradora do último andar de um dos blocos do residencial, Rosimeire conta que, já no dia em que recebeu as chaves de seu apartamento do engenheiro da obra, percebeu alguns defeitos aparentes. O principal deles eram duas enormes infiltrações em um dos quartos, que não só deixam passar umidade quando chove, mas literalmente transformam-se numa “cachoeira” quando há chuvas fortes ou quando a laje sobre ela acumula muita água.
“Na época o engenheiro da construtora tinha me dito que o problema era simples de resolver. Que bastaria apenas uma pintura e passar uma massa [acrílica] porque o problema da infiltração na laje já havia sido resolvido. Veio a primeira chuva e não deu outra: não bastasse o mofo, que hoje depois de cinco anos se espalhou para casa toda, tenho que colocar dois baldes no meu quarto para aparar a água das goteiras. Na época, quando deu esse problema pela primeira vez, eu perdi um colchão e uma cama, que molharam de tanta água que entrou”, conta.
Vítima de um câncer, do qual se tratou quando morava no seu atual apartamento, Rosimeire conta que as paredes mofadas e o estresse que sofre até hoje com outros defeitos no apartamento, que nunca foram resolvidos por quem deveria, agravaram seus problemas de saúde. “Hoje eu tenho um problema no pulmão que surgiu, segundo o meu médico, por causa dessa situação da minha casa. Durante todo o meu tratamento isso me prejudicou muito e até hoje segue prejudicando. Com todo esse estresse e essa doença no pulmão, que surgiu aqui, eu gasto uma fortuna com remédios”, relata.
Como mora no último andar, Rosemeire diz que sua preocupação é ainda maior, porque sobre seu apartamento estão duas caixas d’água de 20 litros. “Com essa umidade toda no meu teto e nas minhas paredes eu realmente tenho muito medo dessas caixas e toda essa laje um dia desabe sobre mim e meu marido”, alerta a moradora. As infiltrações nos quartos são apenas um dos defeitos. A auxiliar de biblioteca conta que perdeu uma geladeira, por problemas da rede elétrica da casa. “Logo que entrei aqui e em várias outras ocasiões eu acionei a construtora, que nunca resolveu. Numa das poucas respostas que me deram, disseram para eu procurar a Caixa. Procurei, mas a Caixa disse que eu deveria insistir com a construtora, que era eles que deveriam resolver. Depois de um tempo resolvi procurar o Procon, que até acionou a construtora e Caixa, mas até hoje nada”, lembra Rosemeire.
Cansada desse jogo de “empurra-empurra”, Rosimeire decidiu buscar seus direitos na justiça. “É muito triste, pois eu esperei dez anos para ser sorteada, depois que me inscrevi num programa da prefeitura, e ainda sim, além do condomínio, pago um valor referente ao financiamento, mas tenho que morar num apartamento que só agrava meu estado de saúde”, reclama.
O judiciário é, talvez, a última esperança para que Rosimeire consiga, não só resolver os vários defeitos em seu apartamento, mas também seja recompensada, ao menos parcialmente, pelos prejuízos financeiros, físicos, psicológicos e a sua saúde, que foram causados ou agravados pelos problemas que ela detectou logo quando recebeu as chaves do apartamento, mas que nunca foram resolvidos.
Vícios aparentes ou ocultos
Todos os consumidores são dignos de uma boa qualidade de moradia, inclusive os beneficiários do programa social Minha Casa Minha Vida, diz a advogada Ana Luiza Fernandes, do escritório Celso Cândido de Souza, contratada pela Rosemeire para buscar seus direitos. Ela informa que, mesmo que o titular do imóvel não perceba alguns defeitos, que podem estar aparentes ou não, ele tem sim direito de requerer os reparos, mesmo após a vistoria feita quando recebe as chaves.
“Os vícios construtivos são divididos basicamente em dois tipos: aparentes e ocultos. Os aparentes são aqueles mais fáceis de serem percebidos, geralmente pequenas avarias em pisos, vidros das janelas e outros. Os vícios ocultos são percebidos somente após algum tempo, como vazamentos de água, rachaduras e infiltrações. Percebendo o defeito, o consumidor deve entrar em contato com a construtora e solicitar o imediato reparo”, explica a advogada, que ainda orienta, se possível, a contratação de um laudo pericial, feito por profissional capacitado, para identificar a origem do problema.
Ana Luiza lembra que de acordo com o art. 26 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), a reclamação sobre vícios/defeitos aparentes é de 90 dias, em se tratando de serviços e produtos duráveis. Quanto os vícios ou defeitos ocultos, especialmente aqueles que podem afetar a segurança e a solidez do imóvel, o prazo para reclamar e requerer os reparos é de até cinco anos. ‘’Há ainda o prazo prescricional para ajuizamento de ação condenatória, que é de 10 anos, de acordo com o art. 205 do CC”, acrescenta a advogada.
Mesmos direitos
Ana Luiza explica que os beneficiários do PMCMV têm os mesmos direitos de um consumidor convencional que tenha adquirido um imóvel de forma à vista ou por um financiamento privado. Ela informa, inclusive, que no caso dos imóveis do programa do governo federal, o beneficiário ou titular pode acionar o Programa de Olho na Qualidade. O serviço é fornecido pela própria Caixa Econômica Federal e faz a ponte entre o cliente e a construtora para garantir atendimento a reclamações sobre possíveis danos físicos decorrentes de vícios construtivos nos imóveis do Casa Verde e Amarela e Minha Casa Minha Vida, para todas as faixas do programa.
Mas havendo o acionamento da Caixa e da construtora responsável pela obra, se o problema persistir ou não havendo nenhum retorno, a orientação de Ana Luiza é clara. “O consumidor deve procurar um advogado especialista na área e acionar o Poder Judiciário. Nessas situações que envolvem imóveis do PMCMV, a responsabilidade da Caixa vai depender de cada caso, como nas obras construídas pelo FAR [Fundo de Arrendamento Residencial], em que a Caixa, além de atuar como financiadora, também é fiscalizadora do empreendimento”, esclarece.